Os caminhos da xilogravura cearense
07 de junho de 2025Arte de talhar madeira, que durante anos foi associada e até confundida com o cordel, encontra outras formas de se materializar e continua representando referenciais de identidade do estado.
Quando falamos sobre cordel, caminhamos por muitas estradas de significados que levam sua definição para o lugar da forma de uma poesia impressa, mas nos referimos a um elemento da cultura brasileira que vai muito além dos versos dentro dos folhetos. O cordel é um produto fascinante do nosso imaginário que, ao mesmo tempo em que dialoga com as mais diversas tradições, está constantemente produzindo novas memórias, imagens e significados.
Seja nas capas, na disposição dos folhetos para a venda, nas cores utilizadas nas ilustrações, no figurino dos vendedores – dos mais elaborados e completos até aqueles que percebemos no detalhe da sandália de couro – existe uma identidade nordestina que se faz justamente nesse conjunto de imagens. Existem também as referências a momentos e a locais específicos – ao passado, ao Sertão – afinal, a memória vem sempre de algum lugar; mas é também uma celebração do contemporâneo com suas articulações e novidades.
Muito se engana quem acha que o cordel vive em ode ao passado. As construções imaginárias, é certo, estão enoveladas a um histórico que não despreza momentos anteriores, as origens, as ancestralidades. Mas como tradição, ela ganha vida quando encontra sentido, funcionamento e valor no presente. É aí que poetas trabalham com temas políticos, existenciais, culturais que valorizam os temas atuais, para que o público continue interessado em ler a poesia do cordel.
E não é só nas temáticas que acontece essa atualização. Capas que, historicamente, remetiam a situações de preconceito, de violência de gênero, de ridicularizações de grupos marginalizados – muitas vezes chancelados pelo argumento do humor ou da crítica social – vão sendo refeitas e ressignificadas, possibilitando que o cordel também seja representante e referência de uma visão progressista do mundo.
É o que a cordelista de Fortaleza Julie Oliveira valoriza nas imagens que acompanham sua poesia. A poeta escreve versos engajados com questões sociais, como o machismo e a violência de gênero, e sempre prioriza os trabalhos de artistas visuais mulheres em suas obras. Além disso, ela atenta para circulação de imagens que valorizem suas protagonistas e que dialoguem de uma forma positiva com o texto.
Sendo ele próprio um produto de design, mas também um espaço para a visibilidade de variados estilos e formas artísticas, o cordel anda lado a lado com a xilogravura. Mas essa não é a sua única forma de ilustração, como explica Julie:
é um casamento bem sucedido, mas ambos são independentes e num relacionamento aberto, em que dialogam com outras artes.
Outro artista cearense que traz na capa um recurso de identidade do folheto é Klevisson Viana . Suas ilustrações carregam mais formas de visualizar imageticamente o cordel e nem sempre estão associadas às clássicas xilogravuras. Sendo também poeta e editor proprietário da Tupynanquim Editora, para o cordelista, as imagens da capa são muito importantes, porque funcionam como a embalagem que vai atrair o público para a compra e leitura dos folhetos.
Dentro dessa diversidade, a xilogravura ainda é muito relevante para a identificação visual do cordel, seja como folheto, seja em outras plataformas e dispositivos. Por isso, mesmo que sejam expressões artísticas diferentes, ainda existe muita confusão entre os dois e há quem exija que estejam sempre atrelados para manter uma ideia de “originalidade”. O problema dessas exigências é que elas geram um engessamento, uma prisão que não permite a liberdade de voo que é tão cara às artes de um modo geral.
Historicamente, é comum haver uma confusão entre cordel e xilogravura: muitas pessoas identificam como sinônimos, ou chamam um pelo outro. Quem vive de perto essas artes gosta de deixar tudo bem explicitado: o cordel é a poesia, o gênero textual, enquanto a xilogravura é a imagem gravada na capa, que é talhada na madeira e funciona como uma espécie de carimbo, permitindo que se reproduzam quantas capas forem necessárias com uma mesma matriz.
A estética do cordel há muito tempo está atrelada às xilogravuras – que não surgiram no Nordeste do Brasil, mas já eram utilizadas na China, muito antes da imprensa de Gutenberg, como formas de gravura e reprodução. O Ceará tem sido um expoente nacional dessas imagens desde a Tipografia São Francisco, atualmente Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte, cidade que fica a 537 Km de Fortaleza.
Mas nem sempre foram as xilogravuras que ilustraram as capas dos folhetos. Quando começaram a ser impressas e vendidas, as poesias eram acompanhadas de imagens de artistas e de cenas de filmes, com fotogramas e clichês de metal. Nos anos 1970, com o trabalho de construção de uma identidade nacional que valorizava produções artesanais como sendo “autenticamente brasileiras”, as xilogravuras passam a ser valorizadas e associadas às capas.
Uma artista que permanece trabalhando com a xilogravura para ilustrar livros, cordéis e para exposições é Erivana D’arc , xilogravurista que mora em Juazeiro do Norte. Para ela, a xilogravura é “um legado de persistência e de resistência, como uma arte que nunca sai conforme seu esboço, mas se reinventa na madeira”. Erivana tem trabalhos desenvolvidos com a Lira Nordestina, que atualmente é administrada pela Universidade Regional do Cariri (URCA).
A xilogravura como elemento estético não depende mais necessariamente da gravação na madeira, como indica a etimologia da palavra (xilo). Por computação gráfica são produzidas imagens para ilustrar livros, discos, produtos de decoração, tecidos e… cordéis. O traço mais espesso, com linhas cujos padrões imitam as fibras da madeira e, portanto, não são uniformes nem constantes. Com falhas de gravação no encontro dos nós, cada xilogravura é única e encontra seu próprio estilo, combinada ao estilo de quem talha a madeira.
Pelo computador, os programas de edição com pincéis específicos criam o tracejado, mas o desenho à mão também pode ser digitalizado e editado, modificando suas cores, tamanhos, vetores e camadas. Ainda que seja uma arte milenar, e talvez justamente por isso, a xilogravura acompanha os recursos do tempo e dos lugares em que é produzida. E deste modo caminha ao lado também das atualizações técnicas que fazem o cordel se transformar, acompanhando as demandas de seu tempo, ao passo em que mantém suas fortes referências de tradição, que garantem uma identidade característica.
Essa estética é uma forte referência ao Nordeste. Quando vemos esses elementos – que não necessariamente foram talhados em madeira – em aberturas de telenovelas, em comerciais, em estampas e itens de decoração, quase sempre eles formam coleções que vêm acompanhados da denominação de “cordel”, sem que precisem estar associados à poesia. Por isso mesmo que o uso cotidiano não separa o cordel e a xilogravura, ainda que poetas e gravadores permaneçam marcando essa separação conceitual.
Quem vive de perto essa fusão é a artista Amanda Nunes , brasiliense, radicada no Ceará há 12 anos, e que teve seu trabalho construído e significado no estado. Foi quando conheceu e se encantou pela xilogravura. Graduada em Design Gráfico, desde 2019 Amanda trabalha com artes plásticas em telas e tintas acrílicas. Quando começou, pintava corpos pretos chapados com linhas, que gerava um efeito do talhado da xilogravura, o que foi amadurecendo e criando um estilo para seus traços.
Amanda nos conta que começou a produzir essas referências à xilo quando se apaixonou pelo estilo, mas não tinha acesso aos materiais para gravar na madeira. Foi aí que ela, utilizando a tinta acrílica, encontrou resultados semelhantes as texturas e formas da xilogravura que ela chama de “original”.
Indicando que não é só no texto do cordel, mas também nas imagens que os acompanham, que encontramos um universo em transformação, Amanda inspira-se em tudo que a constitui como mulher parda/mestiça e periférica. “Gosto de contar o mundo real e onírico que me cerca, através do meu local social, gosto de falar dos sentimentos mais profundos e viscerais, desde a celebração ao trauma, do amor ao sofrimento”, explica.
E assim, no imaginário coletivo, em nossas memórias, o cordel se confunde com as imagens que o acompanham. Seja nas formas mais tradicionais ou atualizando-se de acordo com as tecnologias do momento, seja no folheto ou em outros objetos, o design do cordel não é só uma definição técnica, mas um conjunto de sentidos poéticos, políticos e culturais que nunca se permitem concluir.
Gisa Carvalho é Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Doutora em Comunicação Social pela UFMG, com estágio de doutorado sanduíche em Estudos Literários pela Faculdade de Filologia da Universidade de Vigo – Espanha. Coordenadora do Grupo de Estudos em Tradição e Memória (EsTreMa-UFMA) e do Laboratório Experimental de Jornalismo (Laborejo). Atualmente, integra o Grupo de Pesquisa Insurgente (UFMG) e é chefa da Divisão de Gênero e Diversidade da UFMA.
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