Quem encanta seus males espanta
25 de julho de 2025Do pioneirismo de Artur Azevedo às vozes que hoje dão vida aos palcos maranhenses: conheça os bastidores do teatro musical em São Luís.
Quem vê os olhos atentos e as bocas entreabertas — como se até a respiração pudesse atrapalhar a próxima nota musical — mal acredita que, instantes antes, aquelas mesmas crianças corriam pela sala do teatro ou, como de costume, se acomodavam em suas cadeiras com tablets ou telefones em mãos. Esta é uma sessão de Endêmicos, peça de teatro musical genuinamente maranhense, que subiu ao palco do Teatro João do Vale em julho deste ano. Nela, animais silvestres entoam canções sobre ecossistemas, homo sapiens e como as crianças que estão ali assistindo serão as responsáveis por salvar a natureza que as cerca. Entre coreografias lúdicas e figurinos coloridos, a atenção daqueles meninos e meninas — geralmente tão dividida com o mundo digital — é capturada por completo.
Para as crianças, é evidente que assistir uma peça é ser transportado para outro mundo. Apesar de se distraírem e de serem energéticas, elas são muito atentas e absorvem aquilo que está acontecendo ali na frente delas,compartilha o ator Tiago Marques, que integrou o elenco do espetáculo como Juba, personagem que é um passarinho nativo da região amazônica maranhense.
E mesmo quem já se diz “gente grande” é transportado para uma época distante: em que produções voltadas ao público infantil não subestimavam a inteligência de quem as assistia. “A música é a força imagética que definitivamente convida todas as idades para as histórias sendo contadas,” completa o ator.
Essa fusão entre narrativa e atuação ao vivo já é uma velha conhecida do teatro tradicional. Mas, nas peças musicais, ela ganha uma nova roupagem ao incluir canções e coreografias como parte do espetáculo. “O teatro musical sempre me fascinou porque é uma arte que tem essa capacidade de unir muitas linguagens. A dança, a atuação, a música, o uso da arquitetura no cenário e a escultura de objetos cênicos… e por aí vai”, complementa a atriz Martins, que faz parte da companhia de teatro Arteira. Não é à toa que, dos mais novos aos mais velhos, ninguém sai de uma sessão de teatro musical sem se sentir encantado — ou, ainda, sem passar a semana seguinte cantarolando uma das melodias que ficaram marcadas na cabeça após a apresentação.
Ao longo desta reportagem, mergulharemos nos bastidores do teatro musical em São Luís — conhecendo quem dá vida a esses espetáculos, os desafios de manter o show continuando e as apostas para o futuro desse gênero que, aos poucos, conquista o coração do público maranhense.
O Maranhão em cena: Artur Azevedo e o teatro musical no Brasil
O gênero musical é constantemente associado aos espetáculos da Avenida Broadway, em Nova York, cujo distrito concentra uma rede de 41 teatros especializados em apresentações musicais. Esse cenário é profundamente tradicional: sua origem remonta a um período anterior à própria independência dos Estados Unidos. Os primeiros espetáculos, voltados à elite, tinham roteiros inspirados em óperas francesas e adaptações de Shakespeare.
Com o passar do tempo e a ampliação do acesso, o sucesso foi inevitável — tanto que alguns dos musicais mais populares saíram dos palcos e se transformaram em filmes clássicos, como Grease (1978), O Fantasma da Ópera (2004), Mamma Mia! (2008) e, mais recentemente, Wicked (2024). Essas produções ajudaram a consolidar os musicais como ícones midiáticos — não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. “A cultura pop influencia no interesse por musical e quem cresceu cantando as músicas de High School Musical, Camp Rock, sonhava entrar numa guerra de gangues entre surfistas e motoqueiros (Teen Beach Movie), ser uma Regina George (Meninas Malvadas) ou se interessou em musicais depois de assistir Wicked no cinema, deve se sentir tentado em fazer uma audição,” brinca o ator Matheus Sarandy, da Ápice, uma das companhias artísticas da cidade de São Luís.
Mas muito antes das adaptações de espetáculos da Broadway chegarem ao Brasil, já havia por aqui quem trabalhasse ativamente na construção de uma cena própria de teatro musical. E poucos sabem que o Maranhão tem papel importante nessa história. A começar pelo jornalista Artur Azevedo (1855–1908), que, além de dar nome ao segundo teatro mais antigo do Brasil ainda em funcionamento, localizado na capital maranhense, foi um dos grandes incentivadores da popularização do gênero no país. Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo, ludovicense nato, consagrou-se não só como um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, mas também como um ativista por meio de sua dramaturgia. Ao final do século XIX, ele já colecionava textos com elementos musicais que se tornaram populares ao abordar temáticas como o abolicionismo e realizar críticas à família imperial.
Hoje, o Teatro Arthur Azevedo abriga espetáculos de dança, monólogos e peças tradicionais — todas unidas pelo amor às artes cênicas. Mas é nas sessões de teatro musical que o espaço parece atingir todo o seu potencial: seja assistindo da plateia, da frisa ou dos camarotes, deixar de prestar atenção aos detalhes simplesmente não é uma opção. Raquel explica o porquê: “No teatro musical, não basta saber dançar, ou cantar ou atuar de modo separado. […] Não que as outras artes não sejam múltiplas e complexas em si só, mas pessoalmente eu só consigo sentir essa pluralidade de forma física, e de certa forma até espiritual, dentro do teatro musical.”
Entre os teatros Arthur Azevedo, João do Vale e outros auditórios da cidade — como o Centro Pedagógico Paulo Freire, na UFMA —, foram encenados, em média, de três a quatro espetáculos do gênero “Musical” por mês (dados referentes ao primeiro semestre de 2025). Ainda que essas montagens venham conquistando cada vez mais espaço, é importante destacar que cada montagem exige estudo, treino e formação técnica continuada. “Chegar no teatro musical só sabendo cantar já é meio caminho andado, mas não é o suficiente”, explica Matheus Sarandy. “Eu consegui meu registro [profissional de ator] após o curso do Centro de Artes Cênicas (CACEM). Lá eu tive aulas de atuação, canto, dança, que são ferramentas do teatro musical, mas nada disso me formou um ator de musical.” Ou seja, até chegar ao ponto de atravessar a plateia com sensações, é necessária muita preparação e dedicação por parte do artista.
As produções maranhenses, no entanto, continuam a enfrentar desafios para lotar suas sessões, assim como aconteceu nas primeiras décadas da cena musical nos Estados Unidos. A seguir, conhecemos alguns dos principais obstáculos enfrentados pelos profissionais que se dedicam a manter o teatro musical vivo em São Luís.
Entre o encanto e a sobrevivência: os desafios para se viver do teatro
Ainda que o teatro musical venha ganhando força em São Luís — com produções cativantes e companhias dedicadas ao gênero —, viver exclusivamente dessa arte ainda é um desafio. Quando questionado se era possível se manter apenas com a atuação, Sarandy foi incisivo: “Não conheço um artista que se sustente com o dinheiro da sua atuação em São Luís.” Apesar dos extensos currículos, com formações específicas para o gênero, todos os atores que conversamos responderam de maneira similar. Mas de quem é a culpa, afinal?
“Vou te falar qual o maior desafio do teatro musical não só de São Luís, mas do Brasil todo: é uma arte muito nichada. […] vale ter em mente que o teatro como um todo é ainda um ambiente elitizado. Pautas são caras, figurinos são caros, cenários são caros, aluguel de microfone, iluminadores, sonoplastas, operadores de canhão, produção, gerenciamento de palco, operadores de maquinaria em geral, profissionais de limpeza, até a pessoa que lhe atende quando você chega no teatro, tudo isso é muito necessário mas também muito caro. Note que eu nem mencionei o elenco, diretores, e muitos outros. E tudo isso acaba se traduzindo num ingresso, que é caro pra você, e ainda mais custoso para quem está apresentando (às vezes o dinheiro nem chega lá)”, expôs a atriz Raquel Martins.
Por essas e outras razões, muitos profissionais recorrem a uma verdadeira vida dupla: além de atuar, também se graduam e trabalham em outras áreas. É o caso de Danyella “Fany” Gomes. Ela se descreve em seu perfil no Instagram como “Dentista que canta. Atriz que cuida de pessoas.” Fany toma de conta de sorrisos no consultório, mas também os provoca nos palcos — onde já interpretou personagens como Ariel (A Pequena Sereia) e Glinda (Wicked). Ao ser perguntada sobre como concilia esses papéis, a atriz responde: “Quando estudo canto, eu uso a referência que tenho sobre as estruturas da cavidade oral para mudanças de registro vocal.” Mais do que isso, Fany afirma que o teatro lhe deu ferramentas para lidar com pacientes pediátricos e com necessidades especiais, já que ampliou sua sensibilidade nos atendimentos. “A arte age em todos os âmbitos da vida”, completa.
Apesar dos avanços, Fany acredita que o cenário ainda carece de mais união entre os profissionais. A atriz aponta que muitas companhias acabam se organizando de forma fragmentada — e, por vezes, fechada. “Isso tudo só enfraquece o cenário do teatro musical aqui”, comenta. Embora seja comum ver os mesmos atores em diferentes produções, isso não necessariamente indica escassez de pessoas interessadas em atuar, mas sim a ausência de articulação coletiva e oportunidades estruturadas. Os artistas ouvidos relatam que, muitas vezes, o trabalho no teatro musical pode ser solitário: grande parte da formação é independente, e o acesso a editais ou cursos específicos exige constante iniciativa individual.
Fany encerra a entrevista com otimismo, apontando caminhos que envolvem apoio mais estruturado, voltado à ampliação da acessibilidade. “Tenho bastante esperança de que a tendência é o teatro musical só crescer por aqui. Já tivemos espetáculos lindos, cheios de gente talentosa, com plateia quase vazia. Mas o último em que trabalhei, O Despertar da Primavera, foi sucesso de bilheteria — assim como outras montagens que, quando incentivadas, lotam todas as sessões por tornarem o acesso à cultura possível para quem não pode custear o ingresso.”
Afinal, a quem encanta o teatro musical?
Falando em público, é preciso refletir sobre quem realmente ocupa as cadeiras dos teatros e quais barreiras ainda existem para que a diversidade de espectadores se torne realidade. Nesta seção, vamos explorar os desafios e as iniciativas que buscam ampliar o acesso e o encantamento pelo teatro musical em São Luís.
Como já comentamos, o teatro musical brasileiro nasceu com vocação popular, tendo em Artur Azevedo um dos seus grandes precursores. Seus textos abordavam o cotidiano, as contradições e dilemas da sociedade com humor, crítica e sensibilidade — falavam o que se passava na cabeça da população. Hoje, apesar de os espetáculos seguirem se reinventando para tratar de temas atuais, o público que ocupa as cadeiras ainda não reflete a diversidade que a arte deveria alcançar. “As oportunidades de apresentação se limitam um pouco, com preços nem sempre acessíveis”, argumenta a atriz Raquel Martins.
A atriz revela que, embora o cenário local ainda enfrente desigualdades estruturais, há movimentos importantes em curso, como o projeto Curiar, na cidade de São José de Ribamar, situada na região metropolitana de São Luís, que disponibiliza educação em várias modalidades artísticas para alunos da rede pública.
Outro exemplo local é a Tudo Pronto Produções, que aposta na ideia de que o palco é também um espaço de aprendizado. Desde 2024, a companhia adapta obras literárias cobradas em vestibulares como o Enem e PAES/UEMA para o teatro, com roteiros que resumem os pontos-chave. Além disso, a companhia promove o projeto “Escola Vai ao Teatro”, com espetáculos infantis em parceria com diversas instituições de ensino, que geralmente usam como suporte para as apresentações o auditório do Centro Pedagógico Paulo Freire (UFMA). Raquel Martins celebra essa iniciativa: “Estive no Lisbela e o Prisioneiro. Fico sem palavras para descrever a sensação de quando trezentas, quatrocentas crianças estão assistindo, aprendendo e gostando do espetáculo.”
Ainda no campo das produções educacionais voltadas ao público infanto-juvenil, destaca-se Endêmicos, espetáculo mencionado no início desta reportagem. Assinado por Keilla Kalli — bióloga e escritora —, o texto transforma bichos, biomas e valores em poesia viva no palco, encantando crianças com coreografias divertidas, figurinos vivos e vozes que parecem ter saído de um desenho animado. A narrativa convida animais silvestres de diferentes regiões do Brasil a escreverem uma carta às “crianças sapiens”. Ao final da peça, um voluntário da plateia é chamado para ler o manifesto — breve, mas carregado de sensibilidade.
Olá, crianças! A felicidade explode em nossos corações animais Ao falarmos com crianças tão geniais Heróis e heroínas juntos em uma linda missão Ensinar que a natureza precisa de proteção Se cada um fizer sua parte, todos irão cantar Terão água limpa, comida e abrigo, e ar puro respirar É preciso colocar as ideias em ação Amar, respeitar e cuidar da criação Aprender que os seres vivos são especiais Doar os brinquedos que não usa mais Reciclar o lixo e não jogá-lo no chão Se alimentar sem desperdiçar a refeição Preferir atividades ao ar livre para brincar Energia e água sempre economizar Ter fé, esperança e gratidão Assim, o Planeta viverá em equilíbrio e união — Juba, Toly, Placo e Muri
“Meu treinamento como ator jamais foi direcionado pro público das infâncias. Meu first contato foi através da peça Meu Amigo Charlie Brown (interpretando o Snoopy). Daí vieram vários projetos nesse viés nos quais fui desafiado a adaptar a minha linguagem e a linguagem corporal para o que se entende que se conecta com as infâncias. É muito diferente e muito especial […] as crianças me conheciam caracterizado e, depois da peça, vinham me cumprimentar como um amigo”, dividiu conosco o ator Tiago Marques.
A professora de Educação Socioemocional Loise Lindoso ressalta que esse tipo de vivência vai muito além do encantamento estético: “Prestigiar montagens pode contribuir com a valorização da comunidade teatral, além de termos a possibilidade de uma conscientização, dependendo do tema abordado.” Frequentadora assídua do teatro, ela observa que os incentivos à cultura ultrapassam o público infantil e reverberam em toda a comunidade. “Penso que ter acesso a diferentes tipos de artes, como espetáculos teatrais, cultiva um tipo de comportamento na comunidade — no qual não preciso pensar em sair da minha cidade para vivenciar algo distante da minha realidade.”
Apesar de produções locais com cenografia, sonoplastia e iluminação à altura de grandes montagens, São Luís ainda enfrenta o desafio de atrair o público para histórias que falam da própria terra.
“Existem muitas obras belíssimas sobre o Nordeste e sobre São Luís que, às vezes, até chegam a virar peça e serem apresentadas… Só que, por mais belas e bem trabalhadas que sejam, elas não duram [em cartaz]”, lamenta Raquel Martins.
Muitos espectadores maranhenses acabam buscando fora o que não encontram — ou não reconhecem — na capital. É o que pode ser chamado de “turismo cultural”, no qual o público viaja para assistir às montagens em outros teatros. “Eu queria muito ver tudo [todas as montagens brasileiras] mas o que era vendido como ‘grande produção’ sempre era fora daqui de São Luís. […] Então essa questão de ser apresentado como algo muito grande e até ‘melhor’ do que as produções locais acaba influenciando muito nesse desejo de assistir em São Paulo ou no Rio”, compartilha Laís Souza, bailarina e fã de musicais.
Por isso, os espetáculos adaptados da Broadway — como Os Miseráveis, Matilda e O Rei do Show — costumam conquistar maior adesão, mesmo que o público geral siga restrito. Como forma de driblar essa distância simbólica entre o palco e a plateia, algumas montagens tentam aproximar os textos estrangeiros do universo maranhense. É o caso da adaptação local de Wicked, encenada no Teatro Arthur Azevedo em 2024: em vez da tradicional luta de capoeira presente na versão paulistana, a personagem Glinda surge cantando e dançando o Bumba Meu Boi — provocando risos cúmplices e identificação imediata do público.
Em momentos como esse, o teatro deixa de ser apenas espetáculo e se torna espelho — refletindo, no riso e no reconhecimento, a força das histórias que também são nossas. Da próxima vez que as luzes da cidade parecerem comuns demais, procure onde elas se apagam: talvez, ali, um palco esteja prestes a se acender. Pode ser que, ao ocupar um assento do teatro, você descubra que a história que acontece diante dos seus olhos também pode ser sua também.
Sobre o Laborejo
O Laborejo é um projeto de jornalismo independente que atua no Maranhão, produzindo reportagens aprofundadas sobre temas de interesse público e ampliando a pluralidade de vozes sobre as realidades da sociedade maranhense.
